Não precisávamos de falar. Como ele dizia
-Tu sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que tu estás a pensar
mas muito pouco tempo antes de morrer veio ter comigo e passámos a tarde juntos, sentados lado a lado no sofá. Foi ele quem falou quase sempre, eu pouco abri a boca.
Mostrou-me os braços, o corpo
- Estou miserável
sabia que ia morrer dali a nada e comportou-se com a extraordinária coragem do costume. Coragem, dignidade e pudor. A certa altura
- Para onde queres ir quando morreres?
respondi
-Para os Jerónimos, naturalmente.
Ficou uns minutos calado e depois
- Tu acreditas na eternidade.
Disse-lhe
-Tu também.
Novo silêncio.
-Eu quero ser cremado,
e que me ponham as cinzas na serra, voltado para a Praia das Maçãs.
Novo silêncio. A seguir
- Vou morrer primeiro
que tu. Vou morrer
agora.
Mais silêncio. Eu
- Ganhei-te outra vez.
Ele
-É.
Ele
Ganhamos sempre os
dois
Eu
Porque é que a gente
gosta tanto um do
outro?
Ele silêncio antes de
-Se me voltas a falar
de amor vou-me
embora.
Eu
- Sabes onde é a
porta.
Mas não voltámos a
falar de amor. Para
quê? Estava ali todo.
Depois quis ver os
Iivros
- Para aí vinte mil não?
eu
- Mais ou menos,
incluindo os muitos
que encontrei numa
livraria de segunda
de segunda mão,
assinados por ti.
Silêncio. Eu
- Não podia suportar a
a ideia de que outras pessoas tivessem em casa os livros do meu irmão.
Gesto vago. Depois
ele
- António
E silêncio, depois eu
- João
e silêncio. Ou seja um
diálogo de amor compridíssimo. Depois
Se os pais cá estivessem
e esta frase fez-me compreender melhor a sua imensa dor.
(Cont.)
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
No livro : AS CRÓNICAS
[D.QUIXOTE]