"março. supunha que tinha nascido por ali. provavelmente logo no primeiro dia. 1 de Março é o primeiro dia da primavera.
estranho. não havia explicação plausível para o ostracismo devotado aos equinócios. uma questão de comodidade, diziam alguns. daí o fazer coincidir as estações do ano com inícios e fins de meses. a primavera a começar em 1 de março, o verão a 1 de junho, o outono a 1 de setembro e o inverno a 1 de dezembro.
depois lá aparecia pelo meio desta calendarística distribuição, o 24 de junho. e toda a tradição pagã saía à rua transportada pelas pessoas. cumprindo-se celebrações onde o fogo, os cantares, as danças, as coroas de flores nas mulheres de cabelos louros e olhos azuis. todos azuis. tantos azuis. como se todas fossem pintadas por Deus no mesmo dia.
perfeitas. lindas. lagos pequeninos nos olhos das faces brancas, ainda cobertas de neve. o dia onde a noite é tão curta que as árvores não adormecem e os sonhos não saem dos livros dos poetas. o alquimista das palavras acreditava que tinha nascido por ali. a 1 de março de um ano tão distante que não se via no deserto do tempo plantado na memória. por ali, a 1 de março, ou talvez a 29 de fevereiro de um ano bissexto qualquer.
e assim o deserto do tempo comia-lhe a contagem dos anos. só se lembrava de contar a idade de quatro em quatro anos. as palavras aperaltavam-se naquele dia. também elas acreditavam que ele tinha nascido no primeiro dia de primavera. falavam-lhe ao ouvido, as palavras, e deixavam mel a adocicar-lhe a memória. a solidão azedava-lhe a existência. e a pele, e as lágrimas que escorriam mais depressa naquele dia. lágrimas amargas que deixavam marcas de noite na camisa que vestia. não tinha a certeza se era um aniversário, mas as palavras em correrias tudo faziam para que ele acreditasse. mas ele queria Laura. queria tanto Laura.
e aquele querer era enorme, bastando fechar os olhos para a ver ali chegar. para a ver a afagar-lhe o cabelo. ouvir a sua voz ondulante, num corpo ondulante. um mar de mulher que lhe salgava a pele com gotículas de maré-cheia. fazia-lhe tanta falta. Laura. gostava de lhe beijar as mãos. sentir-lhe os dedos elegantes. percorrê-los com os seus. dedos dados em mãos dadas. e depois deixava que ela se sentasse no seu colo e contava-lhe histórias cheias de palavras que brincavam por todo o corpo de Laura. às vezes achava aquele amor impossível. como se pertencessem, cada um deles, a histórias diferentes. de escritores diferentes. estilos diferentes.
tempos diferentes. como se o seu encontro com Laura resultasse do desmancho de livros diferentes cujas páginas se intercalaram, como o destino intercala o futuro com o passado. ele, página 7 de um conto medieval. ela, página 77 de um romance moderno. ele velho, sem idade. ela frágil, com idade de princesa. ele, perdido. ela num processo de se encontrar. ele, sem vida para entreter. ela, com tudo para acontecer. ele com vontade de morrer. ela cheia de desejos de viver. que faziam ali os dois, num balançar de corpos, que só os olhos fechados dele faziam suceder?
e o amor era tão grande. e a dor era tão grande. e o desejo impossível de a ter crescia desmesuradamente, afundando os pequenos restos do barco a que ele chamou esperança. o alquimista das palavras abriu os olhos e Laura fugiu para dentro dele.
ocupou-lhe outra vez o coração. constava que era o seu aniversário, logo no primeiro dia da primavera e o que ele mais queria era Laura."
Belíssimo texto de Nuno Guimarães, in "Metropolis":
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