Jorge de Sena - Sobre os fuzilamentos de Goya
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Quarta feira....é o dia de arrumar a casa e, surpreendentemente é o dia de recomeçar a arrumar a casa. Entrega-se o trabalho de uma semana recomeça o trabalho de uma semana... E pelo meio, os livros, os filhos, os escritos, os amigos, a mãe... a mãe e o tempo que foge nela... a falta de tempo.. o tempo... O Tempo é tão jovem e vive tão pouco...
E às vezes é tão antigo e cai dos nossos olhos...
E cai dos nossos joelhos e não temos como o segurar... Foge-nos e inquietantemente marca-nos...
O tempo é.... tão súbito e à quarta feira é mais súbito ainda.
Se eu tivesse um mecanismo qualquer onde o pudesse travar...suspender quando me desse jeito e olhá-lo nos olhos...perguntar-lhe pelo futuro, pelos livros que ainda não li e quero ler... pelo tempo que quero ter... e não tenho...
E falar-lhe do passado, torná-lo vivo... e tocar as mãos dos que já partiram... ouvir-lhes as vozes em 3 dimensões e não só na dimensão da memória...
O tempo é tão súbito à quarta feira e precipita-se a semana inteira..............
ACCB
MOTE:
Ruy Belo /ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM CRIANÇAS
(....)
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
(...)
Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]'
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O meu País era verde e vermelho e tinha um sol amarelo no meio. Quando era Verão o Sol era tão grande que me fazia franzir os olhos e olhar tudo por um fio de olhar com a mão em pala sobre as sobrancelhas.
Lembro-me bem do cheiro da areia de manhã cedo, porque era de manhã cedo que a areia embrulhada em mar tinha aquele cheiro que entrava pelo nariz dentro e criava espaço para combater as gripes depois, no Inverno.
E o cheiro do mar chão... com a areia em ondinhas até lá dentro.. dentro, dentro, de tornozelos até ao fundo...
-Não te afastes que a maré está a encher não tarda! - dizia a mãe - vem cá que tens de pôr creme.
- E sinto o cheiro do creme,... ainda hoje não consigo usá-lo no Inverno porque me parece que todos olham e acham que cheguei da praia, que não faço mais nada que chegar da praia, que durmo lá e acordo lá, e os meus pés ganharam algas,... não tarda sonho que sou um peixe.
Ficava por ali naquele cheiro misturado à tarde com os pinheiros e as cigarras e esquecia os meses com a cor do meu bibe. O bibe que tinha de andar sempre limpo, sempre impecável, sempre como se ele fosse mais que eu, e eu dentre dele não me pudesse mexer não fosse estragar o vinco ou o laço.
Esquecia o som do pau de giz que me entrava nos dentes até à alma e me arrepiava tanto que ficava capaz de gritar. E a Maria? A Maria quando ficava a tomar conta da sala arranhava as unhas no quadro e transformava-se toda num pau de giz... Mas aí gritávamos muito e tapávamos os ouvidos. Às vezes batíamos a rir com os pés no chão e a sala de aula parecia um enorme teatro em pateada.
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez... as sapatilhas de ginástica tinham aquele cheiro característico e o palco da escola era escuro para o lado de fora nos dias das representações. Só tinha palmas no fim ou durante se alguém pensava que a hesitação era o fim.
E o cheiro dos livros novos? Já não cheiram assim os livros da escola, nem os cadernos... Nem as tintas das caixas de guaches, nem os lápis de cor... mas ainda tenho o cheiro na memória e, às vezes passa um perfume com a minha professora da primária lá dentro.
E depois vinha de novo a escola... partia o sabor das sanduíches ao almoço na praia para não subir a ladeira até casa, até porque os amigos ficavam quase todos por lá. E se a mãe levava salada russa ( naquele tempo fazia-se )... não há mais nenhuma igual aquela com sabor a praia e a a maré cheia.
E a fruta comida ao calor a pouco e pouco aos pedaços, fresca da geleira que ía sempre leve para cima. As Bananas que vinham da Madeira e nunca mais trouxeram aquele sabor único, as uvas brancas com sabor a risadas e a projectos para a seguir ao almoço...
os pés a escaldar de corrida com gargalhadas porque descalços era mais rápido até lá acima
E até lá acima era tudo, era o ver o Mar daqui de onde se avistava um Mundo enorme que continuava para além do infinito...
Naquele tempo o meu país era verde e vermelho e tinha um grande Sol amarelo no meio... e ainda hoje trago todos os cheiros comigo... mesmo o daquele perfume que às vezes passa com a minha professora da primária lá dentro.
ACCB
Hoje apetecia-me um texto, uma prosa ou um poema daqueles que trazem lembranças... Não precisava de ser de sorrisos, apenas de partilhas. Podia ser daquelas partilhas silenciosas em que quem confia fala, fala, fala e nós escutamos como se não estivéssemos ali, e nem bulimos para não travar a libertação de pensamentos e de mágoas...
Podia ser um poema, daqueles que escrevemos quando as tardes têm o aroma que nunca nenhuma tarde teve ou voltará a ter, em que a manhã sabe a sol na maré... e o sal é fresco como a água cristalina, em que as tardes cheiram a Verão e a marginal tem tudo menos carros, menos sinais vermelhos, só Sol e mar.
Um poema de amores, um texto de amizade,...o único sentimento que não cobra nada e em que te deitas porque nada se move e tudo é suporte, e tudo é silêncio se precisas ou uma orquestra de gargalhadas se também te faz falta.
Hoje, podia escrever memórias algumas daquelas que provocam tempestades e mudanças e amarram o barco ao cais...
"As memórias são como livros escondidos em pó"....mas ensinam que fica tudo o que ainda faz parte de nós...o mais é pó...um sopro que se desvanece ... fica só o livro escondido para lermos em dias de sol, de silêncios e de esperança.
Olha amiga, este texto é para ti. Não sei se o vais ver como sendo teu. Está escrito. Guarda como um livro escondido em pó. Quando precisares sopra o pó...e lê.
ACCB - 1.2.2015
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