O livro.... a questão era o livro.
O tempo que matava esquina a esquina e não sobrava. Era o livro o tormento, a hora no relógio o café a esfriar...
O livro, o raio do livro que chegara de Coimbra de propósito... no banco do pendura , ao sol.. às portas fechadas quando ele ía tomar café a meio da viagem.
O Livro, ai o livro que tinha de ler e não lhe chegava às mãos.
E a culpa como uma espada que descia da cabeça à nuca... e um nó no estômago já sem palavras para explicar como podia ainda não ter ido buscar o livro....
Decisivo?
ACCB
Às vezes quando fico a trabalhar até muito tarde ( não foi o caso hoje) , vêm os pássaros lembrar-me que o Sol começa a despontar na linha do horizonte, ali,...naquele lado em que nascem todos os sonhos e realidades.
Fico então indecisa em acompanhá-lo na sua caminhada diária ou fechar os olhos e dormir enquanto ele se arruma no céu.
Quando acordo já me pendurou as pestanas por cima da realidade e diz-me que fiz bem dormir mas que podia muito bem ter resistido e vê-lo vender o jornal de sonhos do dia pelas ruas da cidade.
ACCB
http://expresso.sapo.pt/matilde-rosa-araujo=f592381
O MENINO DOS PÉS FRIOS
Era uma vez uma casa. Muito grande. Com um tecto altíssimo, nem
sempre azul. Uma casa enorme onde habitava uma grande família: uma família tão
grande que, por vezes, não julgavam os seus membros que se conheciam. E se
deviam amar.
Houve um menino que entrou nesta casa estava ela toda branca.
No chão tapetes de neve, cristais de água de uma brancura que estremecia. E as
próprias árvores escorriam essa brancura. E frio. Iluminava-a uma estrela tão
brilhante que, sobre o tecto, parecia que poisava sobre as nossas mãos.
Ora um dia, em que fazia anos em que esse menino entrara nessa
casa, outro menino por ela andava com frio. Pelo chão, pelos milhões de
cristais, caminhavam os seus pezitos enregelados. Tanto frio que nem podia olhar
a estrela brilhante. Nem os milhões de cristais que pisava.
Uma mulher chorava a um canto dessa casa. E era triste essa
mulher. Estava triste e cansada. Na casa nem tudo era belo. Ali estava aquele
menino cheio de frio. E, como ele, tantos meninos.
E, já há quase dois mil anos, um menino entrara na asa, que
ficou mais clara com a luz brilhante do tecto. O menino entrou só para dizer uma
palavra pequenina: AMOR.
Então essa mulher perguntou ao menino dos pés frios:
– Tu não tens a tua casa?
O menino olhou a mulher triste e ficou triste. Ambos estavam
tristes. E disse quase envergonhado que não.
– Tu não tens roupa? Sapatos? Um lume? Pão?
A cabeça (tão linda!) do menino ia abanando sempre a dizer não.
A mulher triste começou a ter vergonha. Então ela consentia que na sua casa, na
casa de todos, de tecto nem sempre azul, houvesse um menino sem roupa, sem lume,
sem pão? Ela consentia uma coisa assim? E os outros também?
Escorregaram-lhe pela face já enrugada duas lágrimas
transparentes. De água. Água como a que tombava do tecto, como a que se estendia
nos mares.
E perguntou mais ao menino:
– E para onde vais? Eu dou-te qualquer coisa para o
caminho...
O menino olhou para ela admirado. Não lhe disse para onde ia.
Observou-lhe apenas:
– Tens duas gotas de água nos teus olhos que reflectem o céu
azul e a lâmpada do tecto. Não sentes?
A mulher deixou cair pelo rosto enrugado as duas lágrimas. A
pele, então, ficou-lhe mais lisa. E ela tornou-se menos curva. Ergueu-se.
Estendeu, sorrindo, os dois braços ao menino. E disse:
– Fica. Perdoa.
E o menino ficou. Nos seus braços. Encostado ao seu peito. Com
os pés aquecidos sobre o campo de neve.
E a mulher entendeu que não adiantava chorar ao canto da casa.
E o seu vestido era uma bandeira. E o seu coração uma flor. Com o menino a seu
lado.
A FITA VERMELHA
Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão
nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar
tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o
maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem
dado. Mais alegrias que tristezas.
Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos
entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude
compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu
«preço», que dinheiro algum consegue comprar.
Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua,
dos «eléctricos» que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que
continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes
cavalos.
A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo
antas, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos,
trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da
vida.
Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque
um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais
que os alunos.
Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a
maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A
música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos «eléctricos», dos
automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos
cavalos que passavam de vez cm quando.
Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a
ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal
matéria ou disciplina – ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.
Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto
de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas
representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era
desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer.
Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a
leitura.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas
meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu
entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.
Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a
vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem,
assim, um erro semelhante para vós mesmos.
Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só
os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez
em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.
Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora.
Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.
A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa
enfermaria. Num imenso hospital.
Olhei o retratinho dela na caderneta.
Retratinho de «passe», num sorriso de nevoeiro de uma modesta
fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado
saudades.
– Vou vê-la no próximo domingo – anunciei às companheiras.
E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.
Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio
astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das
meninas.
E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui
passear. Ver mar? Campos verdes? Flores?
Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse
ido visitar.
Começava a Primavera.
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia,
para outro próximo domingo.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia.
Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca,
de ferro.
Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros.
Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam
transmitido.
Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
– Estou à espera da professora...
No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude,
a sua doçura, a sua esperança.
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe
profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.
Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso
temos de aprender.
Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase
transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de
novo nascerem.
Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que
voem tão alto em dias de Primavera. T morrem, também, e todas as primaveras
nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta
força imensa.
E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que
precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se
não adia.
Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que
estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos
outros.
Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.
O Tempo Vale Muito Mais do que o Dinheiro
Perder tempo não é como gastar dinheiro.
Se o tempo fosse dinheiro, o dinheiro seria tempo.
Não é. O tempo vale muito mais do que o dinheiro.
Quando morremos, acaba-se o tempo que tivemos.
Quando morremos, o que mais subsiste e insiste é a quantidade de coisas que continuam a existir, apesar de nós.
O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna.
Temos o tempo que temos.
Depois de ter acabado o nosso tempo, não conseguimos comprar mais.
Quando morreu o meu pai, foi-se com ele todo o tempo que ele tinha para passar connosco. As coisas dele ficaram para trás. Sobreviveram. Eram objectos. Alguns tinham valor por fazer lembrar o tempo que passaram com ele - a régua de arquitecto naval, os relógios - quando ele tinha tempo.
As pessoas dizem «time is money» para apressar quem trabalha.
A única maneira de comprar tempo é de precisar de menos dinheiro para viver, para poder passar menos tempo a ganhá-lo.
E ficar com mais tempo para trabalhar no que dá mais gosto e para ter o luxo indispensável de poder perder tempo, a fazer ninharias e a ser-se indolente.
A ideologia dominante de aproveitar bem o tempo impede-nos de perder esses tempos.
Quando penso no meu pai, todas as minhas saudades são de momentos que perdi com ele. Uma noite, numa cabana no Canadá, confessou-me que o único filme de que gostava era «Um Peixe Chamado Wanda«.
Todos os outros eram uma perda de tempo. Perdemos a noite inteira a falarmos e a rirmo-nos disso. Ainda hoje tem graça.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (26 Dez 2011)'
Lisboa ainda hoje pela calçada logo pela manhã num rodopio das 8h00 de Domingo.
Do Principe Real passando pelo Largo de Camões e mergulhando depois no sol do Cais do Sodré. A florista à saida do comboio que vende flores a quem quer dar gestos de amor a alguém que chega de viagem.
O rio passa a tinta azul pelo cais e os barcos deslizam na seda fina que se estende entre as duas margens.
Tudo é branco e se despenha pelas escadas que sobem ao Castelo. Lisboa tem tudo o que a infância tem,... e os passos matinais guardam segredos no som de uma calçada branca de lojas fechadas.
Cantam as fontes no Rossio e o Nicola vê a manhã passar.
Não há gente mas Lisboa tem presenças, tem saudades, tem histórias....tem.
Há muito que de tão sentado em observação Pessoa sorri dos gestos e das conversas e pensa escrever mais à noite, quando o Chiado estiver distraído, os diálogos dos ingleses espantados com a cidade e a indiferença dos que nela vivem e já não a vêem.
Não entro na Bertrand porque é Domingo,...mas até ao Domingo a calçada portuguesa deveria entrar pela Bertrand... e eu também.
Volto a mergulhar na seda do rio... A florista ainda não vendeu os gestos feitos de flores... e há um homem que espera um comboio que nunca mais chega.
Num sorriso...sento-me e peço um café.
ACCB
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